Añemohymba
Aya se instalou facilmente em sua nova moradia. De início, estranhou a ideia, parecia uma decisão repentina, mas quanto mais pensava, mais gostava de fazer parte de algum lugar e, principalmente, queria voltar a se sentir segura.
Sua recepção foi calorosa e ela confirmou suas suspeitas de que era um dos poucos não-coelhos vivendo ali. Sua instrutora começou os ensinamentos de como usar a roca e o tear, e logo descobriu uma enorme satisfação em ver os fios se entrelaçando. Ela só precisava se acostumar com a estranha onda de sono que parecia abater todos da vila, inclusive ela, logo após o almoço.
Alguns dias se passaram e, certo entardecer, ela se encontrava deitada, descansando suas costas doloridas por passar tanto tempo sentada, e seus braços cansados, após horas tecendo. Estava quase pegando no sono quando ouviu uma barulheira do lado de fora. Da janela, observou um tumulto na praça que parecia se concentrar ao redor de um trono.
Curiosa com a agitação, mas sem vontade de enfrentar a aglomeração, desceu até lá, ficando um pouco afastada, e ergueu-se nas pontas dos pés para tentar ver melhor. No trono, vestindo um manto de lã dourado, joias combinando e um adorno florido na cabeça, sentava-se o que poderia ser descrito como uma quimera. A garota nunca havia visto uma daquela forma e foi com fascínio que notou que várias partes do seu corpo eram de animais diferentes como o rosto calmo de vaca, mãos como patas delicadas de rato, longas orelhas de coelho, mas o que mais lhe chamou a atenção era o terceiro olho no meio de sua testa atento a tudo. A sua expressão era séria e ela praticamente não se movia, apenas sentada, parada quase como uma estátua.
Então iniciou-se uma cantoria soando como um mantra e, sem poder se aproximar mais, a garota voltou para a sua toca, levando muitas horas para conseguir dormir por conta do barulho no lado de fora.
No dia seguinte, levantou-se com dificuldade pela manhã, sonolenta. Agradeceu pela máscara cobrir suas olheiras.
– O que aconteceu ontem à noite? Quem era no trono? – perguntou logo após se sentar na frente da roca na casa de sua instrutora.
– É a nossa deusa Arasy. A muitas gerações atrás, ela derrotou Ao Ao que aterrorizava nossa vila e tomou para si sua lã dourada como manto – contou empolgada – Você tem que aprender os mantras para participar dos cultos. Acontecem uma vez por semana.
A tecelã sentou-se ao lado de Aya e disparou a falar de mantras, orações, dogmas, não abrindo espaço para contestações.
Os dias que se passaram não foram exatamente como a garota esperava. Ela estava gostando de aprender algo novo e mal podia esperar para fazer o seu primeiro cachecol. Escolhera cuidadosamente as cores e via-se profundamente concentrada na tarefa. Entretanto, a sua professora tecelã a fazia parar com o trabalho para orarem, e depois lhe ensinar mais sobre a história e os ensinamentos da deusa.
Após alguma insistência, Aya prometeu que compareceria aos cultos; promessa que cumpriu, mas não por muito tempo. Praticamente toda a vila se reunia no templo para recitar mantras e, após algumas vezes, aquilo se tornou repetitivo e sem sentido para a garota.
Certa vez, durante um culto, enquando os outros ao seu lado rezavam de olhos fechados em completa devoção, ela suspirou pesadamente, entediada. Seus olhos se perderam na decoração suntuosa do templo vermelha e dourada, tão diferente do resto da simples e modesta vila. Seguindo os desenhos espiralados do tapete no qual estavam ajoelhados, ela chegou até sua própria mão... e não viu nada. Seus olhos se arregalaram ao perceber que sua mão, seu braço, suas pernas se mesclavam com o ambiente. Sua perplexidade foi substituída por excitação e, ao erguer o rosto, encontrou os olhos da deusa encarando-a intensamente com uma expressão ilegível. A garota sentiu-se constrangida, como se estivesse desrespeitando a casa dela, um local sagrado, que foi a última desculpa para não mais voltar ali.
No dia seguinte, procurando um lugar afastado para poder treinar sua habilidade recém descoberta, deparou-se com a biblioteca em uma das portas quase na saída da vila. Lá, encontrou um refúgio de tranquilidade onde aprendeu a se mesclar entre as estantes dos livros e fugir das broncas de sua professora por se ausentar das lições sobre a deusa, além de não mais se entediar com tantos livros contando histórias diferentes. Imaginou se sua própria história seria interessante o suficiente para um dia ser colocada em um livro ou talvez ela poderia tornar sua história interessante com um pouco de ficção aqui e ali.
Aos poucos, os moradores da comunidade começaram a notar sua ausência nos cultos e, de repente, não tinha mais lugar na mesa para ela durante as refeições, não lhe davam bom dia quando passava pela praça e até sua professora começou a lhe tratar mais friamente. Nem todos a desaprovavam, mas era o suficiente para lhe dar nos nervos. Ela passou a reconsiderar sua decisão de ficar na vila quando começou a sentir que talvez não fizesse parte daquele lugar.
Aquela vida na comunidade era conveniente, mas ela se tornava inquieta. Por mais que tivesse se esforçado, ela percebeu que simplesmente não estava se adaptando àquela sociedade. Recuperava sua coragem a cada dia e não queria se conformar em ficar em um lugar que não conseguia chamar de casa. Era por essa razão que, há meses, em suas horas vagas, ela começara a tecer uma segunda tentativa de um par de asas usando o fio extremamente resistente da aranha que residia na cabeça de sua instrutora. Ela tingiu o fio de um belo vermelho e, após um trabalho muito cuidadoso e lento que durou vários meses, adicionou o par de asas, também tecido.
Mal podia acreditar que havia terminado sua capa após arrematar a última linha. Admirou seu trabalho por longos segundos, orgulhosa de seu acabamento. Retornou praticamente saltitando para a sua toca, ignorando o almoço. Tirou seus pertences do baú onde estavam guardados, despejando-os em sua cama, mas antes que pudesse arrumar sua mochila, o sono da sesta bateu sem aviso fazendo-a praticamente desmaiar no tapete.
—
Quando acordou, soltou um longo suspiro. Estava certa de que havia uma causa não natural para esses ataques de sono, mas todos da vila estavam tão acostumados que não pareciam se importar.
Voltou sua atenção para seus pertences espalhados na cama e notou que a memória de areia que ganhara do zoantropo na praia sumira. Antes de poder se revoltar, o passarinho azul entrou pela janela piando agitadamente, circulou sua cabeça, pegou uma das lanternas penduradas no teto e bicou a porta. A garota não perdeu tempo em colocar o que restara na mochila, vestiu sua capa e abriu a porta. A ave disparou a voar e ela a seguiu.
Não muito longe dali, depararam-se com uma caverna. Sem hesitar, ela prosseguiu sem perder de vista o ponto de luz que o passarinho se tornava na escuridão. Logo em seus primeiros passos, tropeçou em diversos objetos até distinguir o chão irregular coberto de moedas, barras de ouro e prata, mas principalmente cheio de tralha: canetas, sapatos, talheres, chaves, colares, todo o tipo de coisa.
O passarinho não parecia mais tão certo para onde ia, mas ambos continuaram com cautela se aprofundando na caverna. Alguns passos além e ela ouviu mais à frente:
– Ué... o que é isso?
Aya se encostou o máximo que pôde na parede e sua pele mudou de cor, igualando-se ao ambiente, como se sua máscara estivesse se espalhando por todo o corpo.
O dono da voz se aproximou da luz, que revelou um menino de cabelos loiros. Ele balançou o cajado que carregava e o passarinho caiu no chão, imóvel, dormindo profundamente.
A garota observou o menino se abaixar para pegar a lanterna e usá-la para iluminar em volta. Ela ganhara confiança em sua habilidade de camuflagem, sabia que não seria vista, então aproveitou para analisar o menino e lembrou-se dele nas estátuas. Estava certa de que estava de frente a Jaci Yaterê. Ele, sem ver ninguém, ajoelhou-se colocando seu bastão no chão para pegar o pássaro e estudou-o com uma expressão confusa.
Aproveitando a oportunidade, Aya se aproximou pé ante pé e, rapidamente, pegou o bastão e saltou para trás. Ele se assustou, largando a ave, e encarou de boca aberta a garota que parecia um pedaço da parede ambulante.
– De onde você saiu? O que está fazendo aqui? – ele perguntou num misto de assombro e irritação.
– Você pegou algo que é meu – ela acusou.
– Me dá o meu bastão! – Jaci exclamou batendo os pés no chão como uma criança birrenta.
– Devolvo depois que achar o que vim pegar.
Jaci fez um bico e apontou para o caminho esquerdo da bifurcação mais adiante.
Ela colocou o passarinho no capuz de sua capa, pegou a lanterna e continuou pelo caminho indicado. Ao avançar, começou a sentir o chão tremer. Mais alguns passos e com sua luz fraca distinguiu um enorme lagarto, um dragão, correndo atrás de um pássaro com rosto, peito e braços de mulher, embora ainda tivesse feições de coruja. Pela ameaçadora mandíbula aberta cheia de dentes afiados, a intenção do dragão pareceu clara. Aya balançou o bastão como vira Jaci Yaterê fazer e torceu para dar certo. Os passos do grande lagarto se tornaram cambaleantes, seus olhos pesaram. Ele arrastou-se para um canto e caiu no sono.
A zoantropo, meio-mulher-meio-pássaro, foi até ela, ofegante de tanto correr, e agradeceu profusamente.
– Por que está aqui? Também foi roubada? – Aya perguntou.
– Fui e não é a primeira vez – a estranha suspirou. – Jaci sempre faz isso. Ele coloca todo mundo para dormir certa hora do dia para poder andar livremente e mexer nas coisas dos outros. Ele pega o que lhe chama a atenção e trás para cá.
As duas procuraram aflitas pelo que haviam perdido temendo que o dragão acordasse a qualquer momento. Quando conseguiram, apressaram-se em sair da caverna e Aya largou o bastão no meio do caminho.
– Ei – a mulher falou – deixe eu te recompensar por ter me salvado – do bolso no manto que usava tirou um broche com uma pequena pedra verde. Fechou os olhos por um momento, a pedra brilhou, e ela a prendeu na capa da garota. – Vai te guiar para onde precisa ir.
– Obrigada. Mas o que Jaci te roubou?
A mulher desenrolou o pano do que segurava, revelando um espelho que virou para a garota, mas ela viu sua imagem borrada, rodeada de várias pessoas também borradas. A superfície parecia... viva e Aya a tocou. Sua mão passou direto e, após respirar fundo, ela se jogou.
De repente, estava em meio a uma multidão sendo empurrada, sem controle para onde ia até chegar em um corredor. Nas altas paredes, imagens passavam tão rápido que ela precisou olhar bem atentamente para perceber que eram cenas familiares. Memórias de toda a sua vida como se fosse um filme projetado aceleradamente em toda a extensão das paredes não importava qual direção tomasse. O corredor dava para outro e outro, ela logo percebeu que estava em um labirinto. Quando olhou para trás, a multidão virava uma coisa só, tornando-se uma massa disforme. Longos braços surgiram do que se moldava em um tronco musculoso, chifres despontavam do topo da cabeça, cascos se formaram nos pés, e a massa se transformou em uma imensa criatura meio-humano-meio-touro.
Ignorando as cenas de suas memórias tanto boas quanto ruins, Aya correu, pois o minotauro a perseguia. O broche em sua capa estava quente e luminescente como se indicasse o caminho e ela não teve tempo de questionar para onde aquele objeto estava a guiando. Atravessou incontáveis corredores até ficar completamente desorientada, vendo de relance sua vida passar nas paredes até chegar em uma coberta por trepadeiras. Sem pestanejar, escalou-a e pulou para o outro lado, deixando o minotauro para trás.
Estava em um belo jardim, que lembrava o da casa de seus pais que há tanto tempo não via. No centro, havia um aquário pequeno demais para o polvo que o habitava. Parecendo apertado e desconfortável enclausurado na redoma de vidro, os tentáculos extravasavam as bordas, mexendo-se inquietos. A garota se aproximou e deixou um dos tentáculos tocá-la para então segurá-lo e o puxar para tirar o polvo de sua prisão. O aquário tombou e espatifou-se no chão, espalhando água em seus pés. O polvo virou uma fumaça que envolveu o corpo de Aya e foi como se sua máscara derretesse se impregnando em cada poro. Ela soube naquele momento que não seria mais a mesma.
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Deu por si metamorfoseada em um polvo. Estava deitada em seu corpo mole e ergueu um pouco a cabeça para ver os seus tentáculos mexendo-se levemente por conta própria.
Estava só na frente da caverna, sua mochila jogada de um lado. Sua visão mudara, pois seus olhos estavam na lateral da cabeça. Passou um tempo tentando se acostumar com o novo corpo, testando o simples ato de andar, ou melhor, rastejar. Não foi tarefa fácil controlar seus oito braços, ainda mais quando cada toque sobrecarregava seus sentidos uma vez que as diversas ventosas nos tentáculos eram extremamente sensíveis e ela conseguia sentir o gosto da terra em que pisava por elas. Sentiu uma sede desesperadora e sua prioridade se tornou encontrar água.
Seu broche, ainda preso em sua capa, também tinha assumido a forma de um pequeno polvo verde-esmeralda, cintilava e a puxava gentilmente, como quando a guiara no labirinto. Esperando que ele a levasse até a água, arrastou-se lentamente até encontrar um lago e, sem pensar, pulou com capa e tudo. Entretanto, ao contrário do que imaginara, não conseguiu respirar debaixo d’água. Bateu seus oito braços freneticamente e sentiu um deles se enrolar em um peixe que desatou a nadar tentando se livrar dela. O peixe saltou para fora do lago pousando na margem e Aya percebeu que da cintura para baixo o peixe era uma mulher. Olhou por um instante para a criatura tão desengonçada quanto ela própria agitando-se pateticamente na areia. Compadecida, enrolou seus tentáculos ao seu redor e a puxou de volta para a água.
Acalmou-se e reconheceu que estava entre as estátuas, e viu o coreto logo adiante. Seu broche ainda a puxava em uma direção a qual se deixou levar até uma das estátuas mais afastadas atrás do coreto. Tinha a cabeça de polvo, mas o corpo antropoide e com asas nas costas. Aya encarou embasbacada aquele ser, que parecia representar o que ela queria se tornar. Ela se tornara um polvo, mas isso não significava que ela precisaria desistir de seu sonho de voar... Antes de se voltar para a base do pilar de onde sentiu uma estranha pulsação. Viu oito aberturas pequenas apenas o suficiente para seus tentáculos deslizarem e puxarem a tampa, revelando um compartimento.
Dentro, encontrou um baú... trancado. Sabia, de alguma forma, um instinto vindo não se sabe de onde, que seu conteúdo era extremamente importante para ela. Entalhado na madeira, havia vários olhos e, como se várias peças se encaixassem em sua cabeça, ela soube como abri-lo.


