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Añemohymba

 

 

O passarinho logo aprendeu a voar, mas ele preferia ficar ao lado da garota. Ao anoitecer e pelas manhãs, ele cantava docemente ninando-a para um bom sono ou acordando-a para um novo dia de andanças. Ela passava os dias na floresta vagueando, buscando novas experiências e o pássaro estava sempre por perto lhe dando uma sensação de segurança e companhia. Como nômade, conheceu várias partes de Arapy e várias pessoas como ela. Acabara por se acostumar a ver outros com máscaras e a dela já não a incomodava mais.


As palavras do zoantropo que conhecera na praia não a abandonaram e passou quase uma semana para montar o seu próprio par de asas e tornar o seu desejo realidade. Nos últimos dias, recolhera todas as penas que encontrara. Pegou um longo pano retangular que, segundo a vendedora, era de um material especial, e colou penas ao redor mais por decoração do que por qualquer outra coisa. Em uma das extremidades, recortou e costurou um botão para poder prender em volta do pescoço.


Depois, escalou uma árvore, sentou-se no galho, respirou fundo e se jogou, conseguindo planar desajeitadamente, com as “asas” formando um paraquedas, até capotar no chão. O passarinho rodeou sua cabeça como se a desaprovasse.


– Vai acabar se machucando.


Aya ouviu a voz feminina acompanhada de uma risada. Ficou envergonhava por sequer achar que aquele plano poderia dar certo e mais ainda por ter sido flagrada estatelada no chão, enrolada na capa com penas espalhadas ao seu redor.


– Não precisa ficar com vergonha – uma mulher com cabeça de um felino se aproximou, muito bem vestida, ostentando jóias e carregando um pandeiro, mas o que espantou a garota foi a estranha notar seu constrangimento e isso queria dizer que seu rosto estava se fundindo com a máscara.


– Eu só queria... praticar pra quando... ahm... – Aya balbuciou.


– Vai ter muito tempo pra isso depois, não precisa ter pressa, tem que curtir enquanto é jovem!  – a recém-chegada ronronou. – Ei, estou indo tocar com a minha banda, quer vir?


Praticamente acostumada com situações aleatórias na floresta, a garota não quis deixar passar a oportunidade, então concordou. Ela pensou em se arrumar, mas a zoantropo já seguia caminho, então apenas calçou seus queridos sapatos prateados antes de segui-la.


Não andaram muito até chegarem a uma extensa área sem árvores que tinha, ao centro, um casarão. Havia gente por todos os lados conversando animadamente e com taças nas mãos. As duas foram para os fundos onde um galo, um cão e um burro esperavam a mulher-gato. Após rápidas apresentações, Aya recebeu também uma taça; o som começou a fluir, ela arriscou uma tímida e desajeitada dança após algumas músicas. Distraída, seu braço esbarrou em uma das muitas pessoas que se ajuntaram para ver o show, fazendo sua taça virar e o vinho vermelho derramar, tingindo os seus sapatos.


Xingando mentalmente sua falta de sorte, foi procurar um banheiro para limpar os sapatos antes que o líquido secasse e os manchassem. Com o banheiro do piso térreo ocupado, subiu as escadas e, como esperado, o andar de cima estava menos tumultuado.


Procurando a porta certa, surpreendeu-se com uma mão fechando-se ao redor de seu braço, puxando-a para dentro de um quarto.


Ela se desvencilhou da mão que a segurava e encarou seu atacante, que bloqueava a porta. Era baixo, com um sorriso cruel, olhos completamente negros. Seu corpo estava coberto por uma pele de cordeiro, a qual ele jogou no chão revelando sua mais bizarra característica: um falo tão comprido que se enrolava na cintura.


O falo desenrolou-se e esgueirou-se por debaixo do vestido dela como se tivesse vida própria. Com um grito, ela empurrou o pênis, sentindo um nojo que a fez estremecer. A criatura jogou-se em cima dela e agarrou seus punhos. Aya deu joelhadas, cotoveladas, chutou e até mordeu, mas mesmo enquanto lutavam, o falo deslizava por entre suas pernas.


Em um momento, ela gritava e se debatia, completamente aterrorizada, no outro, o grito que soou não era mais o seu e o peso que a prendia não estava mais lá. Seu pássaro azul bicava incessantemente o seu atacante, desviando-se agilmente das mãos do pequeno monstro.


Aproveitando esse momento, Aya ignorou suas pernas trêmulas, ficando de pé e correndo para a janela. Ao impulsionar-se para fora, olhou para o alto e viu o brilho tênue da lua nova. Segurou as laterais de sua capa firmemente e planou floresta adentro.


A floresta adensava-se exponencialmente, era cada vez mais difícil para ela conseguir manter os braços abertos, e quanto mais as árvores se ajuntavam, mais escuro e mais difícil para ela conseguir manobrar. Inevitavelmente, seu braço atingiu um galho e a garota rodopiou no ar, sendo arremessada para o chão, onde rolou por vários metros.
Mesmo sentindo dores pelo corpo, o medo ainda a dominava. Não sabia se estava sendo seguida, então se levantou e andou o mais rápido que pôde. Encontrou um esconderijo entre uma pedra e um barranco e lá se encolheu, os braços ao redor dos joelhos e o rosto cheio de lágrimas umedecendo sua máscara por dentro. Ela não percebeu, mas toda sua pele mudou de cor, mesclando-a com o ambiente e, mal sabia ela que sua camuflagem a salvou de ser pega novamente pelo monstro.


Somente quando amanheceu Aya ousou se mexer. Levantando-se, precisou se escorar na pedra, pois havia um corte profundo em sua panturrilha direita que doía e sangrava quando ela tentava apoiar seu peso na perna ferida. Também constatou que sua capa estava toda rasgada. Precisou respirar fundo para se acalmar e tentar se situar. Caminhou cambaleante, afastando os pensamentos de fome, cansaço e no quão assustada e perdida estava.
Foi quando viu um coelho branco tão grande que, de pé, deveria ser do tamanho dela.


– Ei! – ela chamou e conseguiu sua atenção. – Estou machucada... será que pode me ajudar?


Ele a encarou por alguns segundos e fez um gesto com a pata, chamando-a, e a guiou até um pequeno vale onde, de ambos os lados dos montes, havia portas redondas. Parecia um tipo de comunidade de coelhos, alguns pareciam mais animais embora grandes, outros eram mais humanos, a maioria tinha plantas, flores ou árvores crescendo do topo de suas cabeças. Ela não conseguiu decidir se os achava bonitinhos ou bizarros.


Aya foi levada até uma porta na qual o coelho que ela seguia bateu. Outro coelho, de colete, paletó e óculos, atendeu e logo a deixou entrar.


 

 

 

 

 

 

 


– Deixe-me dar uma olhada... – o coelho ajeitou os óculos e analisou o ferimento na perna da garota. – É um corte feio, mas acho que não vai precisar de pontos.


A garota se afundou na poltrona, deixando o coelho cuidar de seu ferimento. A toca era bem aconchegante e tinha um suave cheiro de ervas, como o remédio aplicado em seu corte.


Assim que terminou, ele se retirou e retornou com um bule de chá e xícaras. Serviu uma e ofereceu-a para a garota.


– Beba, vai te fazer melhor. Você não parece muito bem, está trêmula.


Ela obedeceu. Sentiu seu corpo se aquecer e recuperar um pouco de energia.


– Obrigada – agradeceu, apesar de estar atenta à janela, na esperança de que o pássaro azul aparecesse a qualquer momento.


 – Você parece cansada – o coelho notou. – Venha, vou te levar a uma das tocas desocupadas para que possa dormir tranquila.


 

 

 

 

 

 

 

 

 

Horas depois, acordou desorientada. Estava em uma toca pequena, dentro do chão, uma janela no teto e na parede ao lado da porta, permitiam a entrada de luz.  Havia poucos móveis, incluindo o colchão no chão no qual ela estava deitada. Aya só queria esquecer completamente do dia anterior e agradeceria por qualquer coisa que a distraísse... como o cheiro de comida inundando a toca. Trocou suas roupas e seguiu o cheiro, que a levou a descer para o centro do vale, onde a vila estava reunida para o almoço na grande praça central, ao redor de várias mesas com panelas, travessas, pratos e talheres.


Morrendo de fome, a garota não se acanhou. Alguém lhe ofereceu um prato e ela se serviu. Como o esperado, a comida era vegetariana.


De barriga cheia, perguntou onde poderia se lavar, alguém a levou até uma bica com paredes ao redor onde, finalmente, tomou um banho. Limpa e alimentada, voltou para sua toca com a intenção de pegar sua mochila e... e o sono bateu com força. Ela precisou se deitar e seus olhos se fecharam pouco depois.


Mais uma vez, acordou confusa. O sono fora tão repentino e avassalador que ela não conseguira resistir. Contudo, quando acordara antes do almoço, sentira-se revigorada o que a fez estranhar ter dormido tão repentinamente pouco depois. Espreguiçou-se e foi até a praça mais uma vez, notando o silêncio, tão diferente de como estava durante a refeição comunitária.


– Ah, vejo que acordou – o coelho-médico, sentado em um dos bancos, comentou. – Espero que esteja se sentindo melhor.


– Sim, estou bem melhor, obrigada. Cadê todo mundo?


– Descansando, é hora da sesta – ele a chamou para se sentar ao seu lado. – Falei com o conselho e todos concordaram que você pode fazer parte da comunidade se ajudar com...


– Espera, está falando de eu ficar aqui?


– A não ser que você tenha outro modo de pagar.


– Pagar? Não, mas não sei se quero morar aqui. Quero dizer, nem tinha pensado nisso. Talvez eu possa...


– Olha, já passaram muitos como você por aqui – ele falou gentilmente – sei que vocês jovens gostam da sensação de serem livres, sem pensar muito no futuro ou em consequências. Mas viver em sociedade é natural e necessário. Ficar perambulando por aí é perigoso, não ouviu falar do lobo? Aqui, todos se ajudam, o que nos mantêm seguros e podemos levar uma vida tranquila.


Ela ficou em silêncio, sem saber o que responder. Devia ter imaginado que a ajuda teria um custo.
O médico levou-a até outra toca e deixou-a aos cuidados de uma mulher-coelho. Entre suas orelhas, uma teia era continuamente tecida por uma pequena aranha esbranquiçada. Um fio da teia descia até as mãos da coelha onde ela tricotava o fio de seda com agulhas.


– O inverno está chegando e vou precisar de ajuda para fazer roupas quentes. O que acha? – a coelha perguntou, oferecendo à garota um assento em frente a uma roca de fiar.


– Eu não sei mexer nessa coisa – explicou, rodando a roca experimentalmente.


– Isso pode ser remediado.

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