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Añemohymba

 

 

Certo dia, bem cedo, acordou cheia de disposição. Comeu algumas frutas, pegou sua mochila e partiu para mais um dia de exploração.


Queria encontrar um lugar para plantar e cuidar das sementes dadas pela sua mãe, onde pudesse voltar até florescerem.


Andou por muito tempo e quanto mais avançava, mais a floresta se fechava e as árvores ficavam mais altas e opressoras. O fato de quase não conseguir ver mais o sol por entre as folhagens não a deixou com medo ou incomodada. Achava o farfalhar das folhas somado aos sons dos bichos relaxante e ela poderia passar longos minutos apenas ouvindo o cantar de um pássaro até ser interrompido pelo longíquo grito de um macaco, vendo uma cobra deslizando em um tronco ou sentindo as diferentes fragância de plantas diversas. Qualquer coisa podia ser motivo de admiração e a cada dia que se passava, ela se sentia mais em casa.


De repente, deparou-se com uma clareira. Um caminho de paralelepípedos levava a uma área com colunas, algumas retas, outras irregulares, com cabeças e corpos de criaturas totêmicas em seu topo. O local era todo cercado com paredes abertas em arcos de azulejo de onde saiam cabeças de seres parecidos com cobras. Animais de cerâmica se espalhavam pelo chão. No centro, um coreto todo decorado de forma similar, azulejos e cabeças como se fossem gárgulas com uma redoma de vidro no topo. Na lateral, atravessando um dos arcos, havia uma lagoa cercada por grama envolta por estátuas de cerâmica lembrando seres femininos, formas ovais e criaturas diversas.


Aya escolheu uma dessas criaturas de cerâmica na beira da lagoa para se sentar e fazer uma rápida refeição. Tirou seu pote com frutas da mochila, aproveitou para banhar-se na luz branda do sol e olhar ao seu redor. Nas paredes, podia ver diversos desenhos de animais e plantas. O local todo tinha um ar místico, quase sagrado.


Terminando de comer, ela retornou para investigar o coreto. O interior, estranhamente, parecia muito maior do que do lado de fora e no seu centro, havia uma grande árvore. De seus galhos, pendiam frutos dourados tentadoramente suculentos e quanto mais Aya olhava, mais desejava prová-la. Entretanto, ao se aproximar ouviu um rosnado que a fez estremecer.


Embrenhado entre as raízes, viu um cachorro com olhos de fogo encarando-a com os dentes ameaçadoramente à mostra. Seu corpo era de lagarto o que fez a garota pensar em algum tipo de dragão. Ela se afastou lentamente.


Fora da vista da quimera meio-cão-meio-lagarto, logo na frente do coreto, reparou que em cima de um dos pilares, a estátua tinha a forma da criatura que acabara de ver. Se aproximou e encontrou inscrições em sua lateral. Reconheceu a escrita, mas além de as letras estarem desgastadas, não era exatamente fluente naquela língua. Com esforço, conseguiu entender que seu nome era Teju Jaguá, ele tinha seis irmãos, era o protetor da árvore e seus frutos, mas em seguida a história ficava confusa, mencionando um elixir dourado cultivado por ninfas douradas e a menção a um nome: Melissa.


Sete pilares acompanhavam Teju Jaguá formando um círculo ao redor do coreto. Ela analisou um por um, tentando decifrar as inscrições.


Mboi Tu’i, estava escrito logo abaixo da estátua com aparência de uma quimera com corpo de serpente e cabeça de papagaio. Gosta de lugares úmidos e floridos. (...) Não ataca pessoas, mas seu olhar assusta e dá má sorte.


Moñai, um corpo de cobra, par de chifres na cabeça e presas afiadas. Gostava de roubar vários objetos e escondê-los em uma caverna. Foi morto por uma jovem que fingiu estar apaixonada por ele (...).


Jaci Jaterê, o pilar mostrava uma pessoa baixa, parecendo criança, loiro e de olhos azuis. Sempre carrega um cajado que tem o poder de fazer os outros dormirem (...).


Kurupi, uma pequena criatura com olhos negros sem pupilas e com o falo tão grande que estava enrolado na cintura. À noite, procura por homens perdidos para se satisfazer sexualmente. Ocasionalmente também ataca mulheres (...) em noite de lua nova.


Ao Ao, meio carneiro meio humano, portando um par de presas afiadas. Tem vários filhos iguais a ele. (...) Gosta de carne humana e persegue sua vítima a grandes distâncias.


Luison, tem a aparência de um lobo deformado com uma grande mandíbula cheia de dentes. (...) O mais temido entre os irmãos. Costuma vaguear a procura de vítimas em situações vulneráveis.


Mesmo achando alguns dos irmãos de Teju Jaguá assustadores, ela não parava de pensar no significado de Melissa e em qual gosto teriam os belos frutos dourados.


Lembrando-se de suas sementes, aproveitou para voltar à beira da lagoa. Sabia que certamente retornaria àquele lugar para desvendar o tal mistério, além de que ali batia sol e era úmido, parecia um bom lugar para plantas florescerem. Abriu pequenos buracos na terra e depositou as sementes, cobrindo-as delicadamente. A natureza sempre encontra maneiras de retribuir gentileza ou pelo menos era o que sua mãe costumava dizer.


Satisfeita, levantou-se, mas antes que pudesse se afastar, viu de canto de olho uma bolota dourada. Virou-se rapidamente e encontrou uma abelha quase do tamanho de seu punho, de um amarelo tão intenso que parecia uma gota do sol, pousando em uma flor e foi como se as peças de um quebra cabeça se encaixassem.


– ...Melissa? – Aya chamou incerta, apostando em seu palpite.


A abelha adotou uma postura defensiva, erguendo seu abdômen deixando o ferrão pronto para atacar.
– Espera, você é quem estava plantando aquelas sementes, não era? – o inseto zumbiu.


Aya assentiu com a cabeça vigorosamente e a abelha se aproximou voando ao redor de sua cabeça como se a estudasse com atenção.


– Você é a Melissa não é? Eu só queria um pouco de mel, por favor...


– Todas da minha colmeia somos Melisses! – a abelha explicou e pareceu pensar por alguns segundos. Olhou para a terra afofada onde as sementes haviam sido plantadas antes de se decidir. – Siga-me.


Sem conseguir acreditar na sua sorte, a garota correu atrás do inseto sem pestanejar. Conforme avançavam, ouviram um zunido tão forte que ela não conseguiu entender o que a abelha tentou lhe falar. Melissa disparou na frente e Aya correu para acompanhá-la, parando de supetão poucos passos depois quando se deparou com uma cena espantosa.


As abelhas batalhavam ferozmente contra pequenos seres humanoides de asas portando lanças e outras armas tão afiadas quanto os ferrões. Milhares de fadas e insetos dourados se digladiavam no ar e a cada segundo dezenas caiam no chão para não mais se levantarem.


Aya simplesmente não sabia o que fazer, não tinha ideia da razão do combate e os combatentes se moviam tão rápido que ela mal conseguia acompanhar. Quando uma flecha passou de raspão em seu braço resolveu que ali não era seguro e tentou dar a volta para procurar a colmeia. Manteve-se abaixada, tentando não pisar nos corpos, rodeou o campo de batalha, mas não tinha como se aproximar. A colmeia estava em uma árvore bem no centro de toda a confusão.


Assustou-se com um grito bem ao lado de sua cabeça. Virou-se para ver uma das fadas montada em uma libélula atacando, erguendo uma espada do tamanho de um dedo mindinho humano. A montaria da fada-guerreira logo foi abatida por um ferrão bem mirado, mas ela se vingou decapitando a abelha culpada pelo ato. Entretanto, a vitória da fadinha não durou muito, pois outra abelha, vinda por trás, perfurou-a no meio das costas. Heroicamente, ela ainda conseguiu estocar a sua atacante com sua espada, mas caiu no chão em seguida, sem forças.


Um pouco trêmula, Aya quis sair dali e se esquecer do tal elixir dourado e das frutas suculentas. Ainda com os olhos na batalha, não prestou muita atenção para onde ia até trombar em algo.


Ao redor de uma mesa sentavam-se pessoas cobertas de flores, ou melhor, era como se diversas flores tivessem se amontoado até formarem um ser consciente em forma praticamente humana. Ao que tudo indicava, estavam tomando chá, até serem interrompidos.


– Também estava assistindo? – um dos buquês, ou era o que a garota passou a chamá-los mentalmente, perguntou.


– Sente-se – outro ofereceu, puxando uma cadeira e servindo uma xícara cheia.


Ela aceitou a oferta, ergueu a máscara e bebericou o líquido amargo.


– Você está pálida como um copo de leite – outro buquê comentou – Quer um pouco de mel para adoçar? – ofereceu, e ela quase engasgou.


– Mel? Seria, por acaso, mel daquelas abelhas? – Aya perguntou apontando para a luta que acontecia a poucos passos dali.


– Claro! – outro respondeu com orgulho, erguendo um potinho. – É o melhor de Arapy. As abelhas tiram o néctar de nós e partilham o mel conosco.


Aya não pode deixar de notar a ironia em flores bebendo chá feito de folhas que cresciam em seus corpos e o adoçando com o mel que era feito delas mesmas.


– Eu queria um pouco para levar para Teju Jaguá – a garota explicou num tom quase suplicante.


– Ah... – um dos buquês resmungou – não sei, com essa guerra acontecendo, a produção delas pode cair e ficaremos sem...


– Elas podiam chegar a um acordo!


– Com tantas árvores na floresta, vão brigar logo por uma...


– Um absurdo! Alguém devia intervir e colocar bom senso na cabeça delas...


Os buquês apenas balançaram a cabeça em desaprovação, continuando a resmungar e bebericar o chá, parecendo esquecerem-se completamente dela.


– Pode levar – o buquê sentado ao seu lado falou em tom confidencial, entregando-lhe um potinho.
Aya sussurrou um agradecimento, despediu-se e rapidamente bateu em retirada.


Foi quando percebeu que escurecia e não sabia exatamente onde se encontrava. Tirou o mapa da mochila, ansiosa para encontrar onde estava, pois a luz se esvaia a cada minuto. Foi quando sentiu, mais do que ouviu, algo ou alguém próximo. Olhou em volta e deparou-se com uma silhueta meio escondida atrás de uma árvore. Não podia distinguir exatamente o que era, mas podia ver um olho vermelho brilhando na escuridão. Sentiu um calafrio e lembrou-se das histórias do lobo que ouvira das outras duas garotas.


Engoliu seco pensando em como fugir e se assustou quando uma luz iluminou seu rosto.


– Ei, está perdida? – a voz masculina vinha detrás dela e por isso se virou, encontrando uma máscara quase que completamente com as feições de um cão buldogue. Uma grande mochila em suas costas parecia não dar conta do seu conteúdo, extravasando tralhas de todo o tipo pelo zíper meio aberto. Em uma das mãos, uma pasta, na outra, a lanterna apontada para ela. – Não deveria andar sozinha a essa hora. Não ouviu falar do lobo que tem por aí? Se bobear, ele te pega.


Ao se virar novamente, não viu mais a sinistra silhueta e soltou um suspiro de alívio. Ela confirmou que estava mesmo perdida e começaram a andar.


– Acha que esse lobo é mesmo perigoso? – ela perguntou.


– Não sei –  ele deu de ombros, fazendo sua mochila tilintar. – Nunca vi, mas dizem que quando ele aparece, ninguém fica para contar história.


– Deve ser só exagero... – a garota comentou, não muito confiante.


– Pode ser, mas eu que não quero descobrir. Quero achar um jeito de passar por um Araresa antes de sentir na pele o quão afiadas são as presas desse lobo.


– Araresa?


– É... você leu o manual?


– Li. Quero dizer... folheei – soltou uma risada envergonhada.


– Cada saída da floresta está bloqueada por um bicho de sete cabeças – ele explicou pacientemente.


– Espera – ela interrompeu – quer dizer que eu não posso sair daqui depois que atravessar a floresta?!


– Mas esse é o desafio desse lugar. Essas criaturas não podem ser mortas, então o jeito é achar um meio de passar por elas.


Aya ficou em silêncio digerindo a informação. Logo, viram várias luzes características de onde se situava o conglomerado de casas na árvore, onde a maioria dos recém-chegados se instalava e que chamavam de dormitórios.


– Muito obrigada – ela agradeceu com toda a sinceridade que conseguiu expressar na voz.


– Sem problema. E vê se não esquece mais o mapa. Faz que nem eu – brincou, apontando para sua mochila estufada – e carrega tudo com você o tempo todo – com um último aceno, ele deu as costas e se foi.


 

 

 

O manual não continha muito mais informações sobre Araresa, mas ela notou o curioso detalhe de que não constava a quantidade de cabeças na descrição.


Depois de muito considerar, chegou à conclusão de que o buldogue estava certo. Levaria todos os seus pertences consigo e viveria na floresta, aproveitando tudo o que ela tinha para oferecer, livre como o pássaro que queria se tornar. Aproveitou que sua mochila ainda estava pronta, pendurou-a no ombro e deu adeus à casa na árvore. Ficou tão animada com a ideia, que passou os dias seguintes explorando. Encontrou vários grupos espalhados que compartilhavam casa e comida contanto que o visitante concordasse em ajudar em certas tarefas, mas a garota queria dormir ao relento em sua rede, tomar banho de rio e comer o que colhia.
Suas andanças a trouxeram de volta ao coreto e quis testar se sua teoria do elixir dourado estava certa. Com o pote aberto de mel em mãos, entrou calmamente. A cabeça de cão apareceu por detrás do tronco, farejando o ar. A garota colocou o pote no chão e Teju Jaguá pulou em cima dele como se fosse uma presa, lambendo seu conteúdo avidamente.


Aproveitando a deixa, Aya largou sua mochila no chão e escalou a árvore. Apanhou um fruto perfeitamente redondo e se esticou para pegar outro, mas ouviu o rosnado. Teju Jaguá deu uma última lambida e voltou sua atenção para ela. Sem querer abusar da sorte, saltou do galho em que estava e correu, pegando sua mochila no caminho.


Respirou aliviada e sentou-se em uma das estátuas na beira do lagoa. Alisou a fruta com adoração, sentindo seu cheiro adocicado. Com grande expectativa, preparou-se para a primeira mordida... quando percebeu uma mancha rosa aparecer na superfície da água e viu a cauda do boto jogar água em sua direção, atingindo-a em cheio. Ela deixou a maçã cair e, antes que pudesse reagir, assistiu-a como que em câmera lenta quicar em seu joelho e submergir. Ainda podia ver um fraco brilho dourado se movimentando, sendo levado pela correnteza. Correndo pela margem, seguiu o brilho até seus pés se afundarem em areia e o dourado ser pego por uma onda e desaparecer.


Sem pensar duas vezes, livrou-se de sua mochila e jogou-se no mar e, por um momento, achou ter visto o brilho novamente afundando, mas seu fôlego não aguentou a perseguição e precisou voltar para a superfície. Grunhiu frustrada para, só então, perceber onde estava: uma pequena praia remota onde toda a areia era colorida. Os grãos com cores diferentes se misturavam criando formas e relevos, cada brisa soprada os fazia dançar como um tapete ondulante e inconstante. Quando a água do mar se encontrava com a areia, tomava as cores para si, dissolvendo os grãos, e deslizava pelo chão como aquarela sobre o papel.


Encostado em uma rocha próximo dali, havia um casebre bem simples e, na sua frente, havia um ser tão colorido quanto a areia em que pisava mexendo com várias garrafas. Sua coloração, na parte de cima, era de vários tons de verde azulado e, embaixo, vários tons de vermelho. Apesar da cabeça humanoide, dela saltavam dois olhos imensos capazes de girarem de forma independente e duas antenas ocupavam o lugar onde ficariam as orelhas. Da cintura para baixo, o corpo era segmentado, possuindo diversas patas.
Curiosa, Aya saiu da água e foi até o tal ser observar o que ele fazia.


– O que está fazendo? – ela perguntou.


Os grandes olhos se viraram para ela e se estreitaram. Em silêncio, ele pegou uma pequena garrafa, encheu-a de areia até a metade, pegou um punhado de água, preencheu a outra metade e chacoalhou-a por alguns segundos, parecendo muito concentrado. Depois esperou o conteúdo da garrafa se assentar e mostrou para a garota. Havia se formado uma imagem abstrata com fios de cores variadas que a garota nem sequer conseguia descrever. Para Aya, era como olhar para algo que seu cérebro simplesmente não compreendia.
Ainda boquiaberta, ela recebeu sem questionar uma garrafinha dele e, sem precisar de instruções, repetiu o processo. Porém, quando a areia misturada com água do mar se assentou em sua garrafa, uma imagem clara, distinguível de todos os ângulos se formara: era ela mesma no fundo do mar com braços longos e guelras segurando um ponto dourado.


Ele analisou o conteúdo da garrafa de Aya e riu.


– No que estava pensando?


– Ah? Eu estava pensando... – ela ponderou – que se eu pudesse respirar debaixo d’água e se eu tivesse me esticado um pouco mais teria alcançado uma coisa que perdi no mar.


– Essa areia – ele explicou – é capaz de mostrar o que você está realmente pensando.


– Mas então... – a garota apontou abobalhadamente para a garrafa que o zoantropo lhe mostrara antes.


– É que eu sou capaz de ver o que você não consegue nem imaginar. E dessa forma, posso compartilhar com outros o meu ponto de vista. Quer ver mais?


Ela assentiu vigorosamente e aquele ser, meio-humano-meio-lagosta, pegou outra garrafa maior. Contou histórias de sereias, cidades marinhas, navios naufragados e ilustrou-as com a ajuda da areia e da água. A garota assistia fascinada às imagens que mudavam cada vez que eram chacoalhadas.


– O fundo do mar parece incrível – Aya comentou encantada.


– E pra você se lembrar disso, vou te dar essa daqui – ele pegou um martelinho e começou a quebrar, muito delicadamente, o vidro da garrafa.


– Não! – a garota interrompeu – Eu gosto assim – ela apontou para a representação fluída de um tesouro perdido, incluindo um tridente, entre corais e peixes.


– Essas garrafas são especiais – o zoantropo explicou – enquanto a imagem está em uma delas, é o seu pensamento, apenas uma ideia – pegou a garrafinha que dera para a garota anteriormente e mostrou. A cena que ela fizera estava borrada e sumindo, se apagando como uma memória distante. – Mas ideias se esvaecem se não se tornam reais.


 

 

 

 

 

 

 


Aya subiu a lagoa novamente com o presente que ganhara do estranho e colorido zoantropo. Depois de ele quebrar a garrafa cuidadosamente, parte da água vazou e a areia se solidificou como uma escultura de pedra cilíndrica.


Chegando onde estavam os pilares, foi checar se as sementes que plantara progrediram. As plantas haviam crescido e os botões de flores pareciam prestes a desabrochar. Sua mãe lhe ensinara que falar com as plantas ajudava em seu crescimento. Sem saber o que dizer e sentindo-se boba em tentar conversar com o que não podia lhe responder, resolveu tirar o livro que carregava em sua mochila, abriu em uma página aleatória e começou a ler em voz alta:

 


Era uma vez um vampiro narcisista. Ele se convencera de sua beleza, mas seu maior castigo era não poder ver seu reflexo. Nenhum espelho cedia aos seus encantos, a água ignorava suas súplicas, nenhuma câmera fotográfica captava seu esplendor, nem mesmo olhando profundamente nos olhos de outra pessoa podia encontrar sua silhueta.


Um dia, porém, encontrou-se com um tanuki. Sabia que tal criatura tinha a capacidade de metamorfosear em praticamente qualquer coisa e tinha uma insaciável sede pelo álcool, então barganhou: se o tanuki se transformasse no vampiro, ele lhe daria uma garrafa de vinho.


Entretanto, muito astuciosa, o tanuki logo percebeu pelo cheiro que na garrafa não tinha vinho, mas sangue. Por ter uma natureza traiçoeira, ele aceitou a aposta, se transformando em um monstro, cheio de brotoejas espalhadas pelo rosto, olhos completamente brancos esbugalhados, dentes afiados e tortos e musgo ao invés de cabelo.


Aterrorizado, o vampiro atacou o ser abominável com a garrafa, espatifando-a na cabeça do tanuki, matando-o. Depois, sem conseguir suportar a possibilidade de ter uma face tão horrenda, cortou-se com os cacos da garrafa que se quebrara e deixou todo o sangue de sua última refeição drenar de seu corpo.

 


Enquanto falava, ela não percebera que uma das flores se agitava. Ao terminar de ler o conto, perguntou-se se tinha sido uma boa ideia, uma vez que a história não era exatamente inspiradora. Voltou a olhar para as plantas e viu o botão que se agitava desabrochar. As pétalas se desenrolaram lentamente, revelando em seu interior um pequeno passarinho azul. O passarinho se chacoalhou e olhou ao redor, como se tentasse reconhecer o mundo que se revelara para ele. Já tinha algumas poucas penas e a garota o segurou gentilmente.

 

Foi quando um grito agudo e aterrorizante lhe deu um frio na espinha. Do outro lado do lago, viu um corpo comprido coberto de escamas verdes que gradativamente se tornavam penas ao chegar à região da cabeça, onde havia um grosso e curto bico. Surpresa, a garota reconheceu Mboi Tu’i pela estátua que vira. Antes que pudesse desviar o rosto, seus olhos se encontraram e ela sentiu uma terrível sensação de mau agouro.

 

 

 

Glossário:

Araresa: (guarani) olho(s) do universo.

Melissa: (grego) abelha. É o nome da ninfa que cuidou de Zeus alimentando-o com mel.

Quimera: (grego) ser mitológico composto de mais de um animal. O termo também é usado em zoologia para indicar um conjunto de células distintas em um único organismo.

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