Uma Terramar Esbranquiçada
Como o canal ScyFy destruiu os meus livros.
Por: Ursula K. Le Guin
Tradução: Mayra Bueno
Original em inglês: http://www.slate.com/articles/arts/culturebox/2004/12/a_whitewashed_earthsea.html
Nota de tradução: Ursula K. Le Guin é uma autora premiada de livros de fantasia e ficção-científica.
Na terça-feira à noite, o canal ScyFy [anteriormente chamado Sci Fi] levou ao ar o episódio final da Lenda de Terramar (Legend of Earthsea), a minissérie baseada — vagamente, como percebi — nos meus livros de Terramar. Os livros, O Feiticeiro e a Sombra (A Wizard of Earthsea) e as Os Túmulos de Atuan (The Tombs of Atuan), que foram publicados há mais de 30 anos, são sobre dois jovens descobrindo quais são seus poderes, sua liberdade e suas responsabilidades. Não sei sobre o que é a minissérie. É cheio de cenas da minha história, remanejadas de forma diferente, uma trama completamente diferente, então não faz nenhum sentido. Meu protagonista é Ged, um rapaz de pele marrom-avermelhada. No filme, ele é um menino branco petulante. Leitores que se perguntaram porque eu “deixei que alterassem a história” podem encontrar algumas respostas aqui.
Quando vendi os direitos autorais de Terramar há alguns anos, meu contrato me deu o status de “consultora” — que significa o que os produtores quiserem, ou seja, significa muito pouco ou nada. Minha agência não conseguiu melhorar esta cláusula. Mas os compradores falaram como se estivessem realmente interessados em respeitar os livros e pedir minha opinião enquanto planejassem o filme. Disseram que haviam assegurado Philippa Boyens (co-autor dos roteiros de O Senhor dos Anéis) como o roteirista principal. O roteiro, para mim, era o mais importante, então a presença de Boyens foi um fator essencial para a minha decisão de vender para esse grupo os direitos para um filme.
Meses se passaram. Até os produtores conseguirem o apoio do canal ScyFy para a minissérie — e outro produtor embarcou no projeto, Robert Halmi Sr. —eles haviam perdido Boyens. Isso foi um golpe pra mim. Mas eu tinha acabado de assitir a minissérie do Halmi, DreamKeeper (2003), com um belíssimo elenco de nativos americanos, e esperei que Halmi pudesse incluir alguns desses ótimos atores em Terramar.
A essa altura, tudo aconteceu muito rápido. Logo no início, os produtores me contataram amigavelmente e respondi igualmente. Perguntei se eles gostariam de uma lista com a pronúncia dos nomes e falei que, mesmo sabendo que uma adaptação para filme deve diferenciar muito dos livros, eu esperava que eles não fizessem nenhuma mudança desnecessária no enredo ou nos personagens — algo perigoso, pois os livros já são conhecidos por milhões de pessoas há decadas. Eles responderam que o público televisivo é muito maior e completamente diferente, e dificilmente se importaria com mudanças na história e nos personagens do livro.
Eles me enviaram várias versões do roteiro — e me avisaram que as filmagens já haviam começado. Eu tinha sido excluída do processo. E, ainda mais rápido, a questão racial, um elemento crucial, tinha sido cortado da história. Na minissérie, [o ator] Danny Glover é o único homem não-branco entre os personagens principais (embora tenha mais alguns coadjuvantes). Nada parecido com a Terramar que eu imaginava. Quando li o roteiro, percebi que os produtores não entendiam sobre o que eram os livros e não tinham qualquer interesse em descobrir. Tudo o que eles queriam era usar o nome “Terramar”, e algumas cenas dos livros, para fazerem um filme genérico de magia com um enredo sem significado baseado em sexo e violência.
A maioria dos meus personagens em meus livros de fantasia e ficção científica futurística não são brancos. São mestiços; são arco-íris. No meu primeiro grande romance de ficção-científica, A Mão Esquerda da Escuridão (The Left Hand of Darkness), a única pessoa da Terra é um homem negro e todos os outros personagens do livro são morenos como os Inuítes* (ou tibetanos). Nos romances de fantasia nos quais a minissérie é “baseada”, todos têm a pele morena ou vermelho-cobre ou negra, exceto o povo Kargish do leste e seus descendentes no Arquipélago, que são brancos com cabelos claros ou escuros. A personagem principal, Tenar, uma Karg, é um branca morena. Ged, do Arquipélago, é marrom-avermelado. Seu amigo, Vetch, é negro. Na minissérie, Tenar é interpretada pelo atriz [da série] Smallville, Kristin Kreuk, a única do elenco que parece um pouco asiática. Ged e Vetch são brancos.
Minha paleta de cores foi consciente e deliberada desde o início. Não conseguia entender porque todo mundo em ficção-científica tinha quer ser branquelo com o nome de Bob ou Joe ou Bill. Não conseguia entender porque todo mundo em fantasia heróica tinha de ser branco (e porque todas as personagens principais femininas tinham “olhos violeta”). Nem sequer fazia sentido. Os brancos são minorias na Terra hoje — por que eles não continuariam sendo minoria, ou mesmo afundado completamente na grande piscina genética colorida, no futuro?
A tradição fantástica da qual eu fazia parte veio do norte europeu, por conta disso era sobre pessoas brancas. Eu sou branca, mas não européia. Meus personagens podiam ser da cor que eu quisesse, e gosto de vermelho, marrom e preto. Eu era um pouco zelosa da minha paleta de cores. Achei que algumas crianças brancas (os livros foram publicados para “jovens adultos”) não se indentificariam de cara com um garoto mulato, então fui adicionando as informações sobre cores de pele aos poucos na esperança de que os leitores “entrariam na pele do Ged” e só então descobririam que não era uma pele branca.
Nunca fui questionada sobre essa decisão por nenhum editor. Nenhuma reclamação foi levantada. Acredito que isso seja crédito dos meus primeiros editores na Parnassus e Atheneum [duas editoras americanas], que compraram os livros antes de terem uma reputação.
Mas tive vários problemas com a arte da capa. Não com a primeira capa da primeira edição — um perfil marcante marrom-avermelhado do Ged — nem com as quatro belas pinturas de Margaret Chodos Irvine para a série de capa dura da Atheneum, mas várias outras vezes. O primeiro mago inglês era esse cara pálido, cabisbaixo, imaculado — eu gritava só de ver.
Gradualmente, fiquei mais influente, tinha mais voz quanto as capas. E muito, muito, muito gradualmente as editoras começaram a perder o medo cego de colocar um rosto não-branco na capa de um livro. “Prejudica as vendas, prejudica as vendas” é o mantra. É, e daí? Nos meus livros, Ged com um rosto branco é uma mentira, uma traição — uma traição ao livro e ao leitor em potencial.
Acho que é possível que alguns leitores sequer percebam a cor das pessoas na história. Não percebem, não se importam. Brancos, claro, tem o privilégio de não se importarem, de serem “daltônicos”. Ninguém mais tem esse privilégio.
Ouvi — não muitas vezes, mas muito memoráveis — leitores de cor me dizerem que os livros de Terramar eram os únicos livros do gênero nos quais eles se sentiram incluídos e o quanto isso siginificava para eles, particularmente para adolescentes, que não encontravam nada para ler em fantasia ou ficção científica além de aventuras de brancos em mundos brancos. Aquelas cartas foram uma extraordinária recompensa e uma verdadeira alegria para mim.
Até hoje, nenhum leitor de cor me falou que eu devia parar ou que descrevi a etnia errado. Quando o fizerem, vou ouvir. Sendo a filha de um antropologista, estou intensamente atenta ao risco de imperialismo cultural ou étnico — uma escritora branca falando por pessoas não-brancas, assumindo essa voz, um ato de extrema arrogância. Em um mundo de fantasia totalmente inventado ou em uma ficção científica futurística, no mundo arco-íris que podemos imaginar, o risco é abrandado. Essa é a beleza da ficção-científica e fantasia: a liberdade para inventar.
Mas com toda liberdade, vem responsabilidade. O que é algo que os produtores parecem não entender.
*Nota de tradução: Inuítes são esquimós indígenas das regiões árticas.