top of page

Sem Horizonte

 

 

Acordei.

 

Senti mais do que ouvi um zunido entre meus ouvidos.

 

Ainda atordoada, abri lentamente os olhos. Por alguma razão, algo estava diferente, tudo parecia mais nítido. Não sabia como, mas conseguia identificar cada tom de cinza das sombras no teto, cada mancha, a textura da camada de tinta branca. Essas informações simplesmente me vinham como se fossem óbvias e sumiam tão fácil quanto. A intensidade da lâmpada não fez meus olhos arderem mesmo quando olhei diretamente para ela. O local tinha a temperatura controlada em 15ºC, mas não me sentia incomodada nem estava arrepiada. Na verdade, não tinha qualquer sensação.

 

Estranhei.

 

Por quanto tempo fiquei desacordada?

 

Minhas juntas estavam duras, tive dificuldade para fazer meu corpo entender que queria me levantar. Era como se tentasse fazer engrenagens funcionarem. Aos poucos, testei meus movimentos, ensaiando levantar-me. Olhei para os lados para ver se encontrava alguma pista de onde estava.

 

Havia algumas telas ao meu redor. Uma mostrava um corpo humano, enquanto outra apontava detalhes de cabos e conectores como se fossem instruções. Em outra tela, uma barra verde indicava “upload 100%”. A resposta me veio de imediato: backup de memórias. Outra, completamente vermelha, piscava com urgência “operação incompleta”. Que operação? Que memórias? Minhas? Não conseguia registrar as informações me sendo enviadas. Parecia que minha consciência era um ser separado de mim e, por alguma razão, tinha mais informações do que eu. Não parecia muito justo. Eu precisava organizar meus pensamentos.

 

Sentei-me lentamente, coloquei o pé no chão e um som metálico ressoou pela habitação. Olhei para baixo e encarei um pé feito de metal. Meu pé. Sem carne, sem ossos, apenas um material rígido e sem vida. Desci a outra perna com cuidado e encarei por longos segundos os cabos e tubos formando a estrutura permitindo me mover livremente. Olhei para os meus braços, meu tronco, meu corpo era inteiro de metal, como o meu pé, cabos e tubos à mostra, sem estarem encaixados devidamente, sem a cobertura devida, sem proteção.

 

Operação incompleta.

 

Ah.

 

Ergui minha mão e pude ver cada junta, cada solda e parafuso, e, de algum modo, conseguia identificar cada fio substituindo meus nervos. Mexi um dedo de cada vez, aliviada em saber que me obedeciam.

 

Tentei entender minha confusão. Teria eu sido criada, construída? Ou já tivera sangue percorrendo minhas veias? As impressões de um corpo de verdade eram muito fortes em mim. O vento nos cabelos, o gosto de chocolate, dor, embrulho no estômago, tudo isso parecia muito real. Já sentira essas coisas. Eu sabia que a resposta estava em algum lugar dentro de mim, apenas não conseguia encontrá-la. Como se minhas lembranças estivessem em alguma pasta e eu não soubesse o caminho para acessá-las.

 

Meu corpo artificial estava nu, mas não senti vergonha. Por um momento tive o impulso de me vestir e procurar algo para comer, mas era apenas um instinto irracional, pois não precisava de nada disso. Fome, frio, doenças, eram coisas com as quais não precisava mais me preocupar. Por outro lado, eu nunca mais comeria sorvete, sentiria o calor de um abraço ou a maciez agradável dos pelos de um gato. A melancolia que esperei chegar ante a tais pensamentos não veio e decidi sair daquela sala.

 

Localizei uma porta e encaminhei-me para lá, passando por cima de instrumentos médicos espalhados pelo chão, como se tivessem sido largados às pressas. Vi de relance, do outro lado da sala, outra maca coberta por um pano. Eu sabia, sabia, que era o meu corpo. Pensei por um mero segundo em olhar e descobri-lo para... não sei, talvez me despedir. Mas o que estava lá não me importava mais.

 

Ao abrir a porta, deparei-me com um corredor vazio. Foi quando notei um ruído constante me acompanhando desde o momento em que acordei. Um alerta sonoro dentro de minha cabeça. Aliás, fora o motivo a me fazer despertar. Quando ponderei sobre isso, a palavra “alarme” apareceu em minha mente, mas não conseguia entender seu significado. Com certeza eu me obrigara a reaver a consciência, um instinto de sobrevivência ou apenas uma programação, não saberia dizer.

 

O corredor parecia o quarto, tudo muito neutro para chamar a atenção, e continuei com passos cuidadosos tentando me lembrar daquele local. De algum modo, tudo aquilo parecia levemente familiar. Segui para outro corredor, maior e com várias portas. Escolhi um lado e entrei aleatoriamente em algum cômodo, procurando alguma pista, algum gatilho para minhas memórias nubladas.

 

Era um banheiro bem comum. Típico lugar comunitário, talvez de uma empresa ou clínica; ainda não tinha certeza de onde estava. Aproximei-me do espelho sem olhá-lo diretamente, temerosa e ao mesmo tempo ansiosa pelo que encontraria. Quando finalmente parei e dirigi meu olhar fixamente para a superfície refletora, descobri que ainda tinha voz. Ri.

 

No lugar de meu rosto, uma máscara. As feições brancas de uma raposa encaravam-me de volta, com fendas finas no lugar de olho, longas orelhas apontadas para cima, e traços vermelhos como em uma tradicional máscara kitsune japonesa. Apesar da risada ecoando, minha expressão não mudou. Encantei-me com os detalhes coloridos delicados contrastando com meus membros metálicos.

 

Uma memória foi puxada do fundo do baú, ou melhor, de alguma pasta obscura em meu banco de dados. Um senhor grisalho, com um sorriso triste, sentado em uma varanda com a máscara no colo. Ele a estendeu em minha direção e a peguei. Meu coração se aqueceu, eu estava feliz. Olhei para o rosto de raposa sabendo que havia sido feito pelas mãos artesãs dele, meu avô. Abracei-a e sorri para o senhor. Dei-lhe um beijo no rosto e me virei. Entrei em um carro onde homens inexpressivos me esperavam. Continuava feliz.

 

Aquele senhor... Meu avô. A máscara fora um presente de despedida. Eu estava indo... não, vindo para cá.

 

Saí do banheiro, caminhei mais um pouco e entrei por outra porta qualquer. Uma mesa redonda no centro, copos descartáveis com restos de café, cadeiras jogadas no chão. Se tivesse testa, com certeza estaria franzindo o cenho numa expressão pensativa. Quem estava aqui, saiu às pressas. Uma pontada de inquietude se juntou ao alarme ressoando no meu crânio de metal.

 

Um enorme computador ocupava três das quatro paredes. Sentei-me na frente do teclado. A tela mostrava um triângulo de cabeça para baixo com outro triângulo menor, também de cabeça para baixo e dois círculos, lembrando uma coruja mal encarada. Eu conhecia aquela logo, já vira várias e várias vezes. Essa fagulha de memória me trouxe uma familiaridade com o computador à minha frente. Eu já o usara ante, conhecia seus segredos. Uma avalanche de lugares e rosto relacionados ao Laboratório onde eu estava... sim, um laboratório! Estava difícil me concentrar. Tentei suspirar, um hábito de quando ainda tinha pulmões para tal. Relaxei minha mente, deixei as ideias se dissiparem, tentei não pensar em mais nada. Essas memórias não eram relevantes agora, precisava me focar no presente. O computador me daria respostas, então deixei meus dedos voarem pelas teclas.

 

O monitor principal me mostrou um mapa, revelando o que eu já esperava: que o local era enorme. Com mais alguns toques, descobri que conseguia facilmente transferir o mapa para o meu banco de dados interno. Meus dedos se mexiam mais velozes do que eu podia acompanhar. Outro mapa. Estávamos em uma colônia espacial. Os monitores mostravam uma nave gigantesca pairando sobre a colônia, se aproximando do laboratório. Vários pontinhos, naves menores, deslocavam-se se deslocavam na direção da maior, muitas desaparecendo do radar. A tela ficou vermelha e uma voz feminina sem qualquer emoção soou pelas caixas de som: “defesas sob ataque”.

 

Levantei-me imediatamente. Não precisava interpretar a mensagem para entender aonde aquilo me levaria se continuasse por aqui. O mapa do laboratório apareceu detalhadamente na minha cabeça assim que pensei nele. Segui apressadamente para o hangar, ainda tentando me acostumar com meus estranhos, mais pesados, movimentos e com o som dos meus pés ao entrarem em contato com o chão.

Chegando ao hangar, homens e mulheres de jaleco se desesperavam tentando entrar na última nave, gritando de um lado para o outro sem saber o que fazer. Não lhes dei atenção.

 

Continuei em direção a uma das pequenas naves de pesquisa. Com as informações que eu tinha direto do computador principal, rapidamente verifiquei que a de número 26 ainda estava atracada e vaga. Comemorei internamente, gostava dela.

 

Ouvi passos. Outros pareciam ter a mesma ideia que eu.

 

Fechei a porta atrás de mim e liguei os controles com confiança, sem precisar raciocinar muito. Aqueles controles, aqueles botões, conhecia cada um deles, como se nos conectássemos. A máquina tomou vida, como se me pedisse para voar, mas me contive.  Chequei o nível de energia e combustível, depois acessei o sistema de segurança do laboratório. Pude ver o exato momento do ataque da grande nave e esperei o momento exato. Com sorte, a explosão me permitiria não ser detectada.

 

Aguardei pacientemente a contagem regressiva no meu cronômetro interno. Nos últimos segundos, abri a comporta e minha nave foi arremessada pelo tubo que me jogaria no espaço. Meu radar indicava as outras naves de pesquisa restantes tentando escapar para todos os lados. Alguns não tiveram a mesma sorte, ou o mesmo cálculo, do que eu e não conseguiram se afastar a tempo de não serem pegos pelas labaredas e destroços.

 

 Com a quantidade de energia necessária, assumi que a nave agressora não conseguiria destruir uma colônia inteira. Eu também esperava que esse não fosse o objetivo. Não conseguia imaginar uma razão lógica para se massacrar milhares de inocentes em tempos de paz. Liguei meu monitor de vigilância e guardei a imagem daquele brasão, suas cores, seus detalhes.

 

O ataque parecia ter cessado e vi pontos descendo da nave enorme até o laboratório. Suas intenções não podiam ser boas, mas nada disso me importava agora. Afastando-me progressivamente, logo tudo se tornou distante e quase surreal.

 

Não tinha raiva nem sequer me sentia perdida por vagar sem rumo entre a escuridão do espaço. Pelo contrário, a imensidão do mar estrelado me dava tranquilidade. A tensão da fuga dissipou-se logo sendo substituída por calma, embora certa confusão ainda permanecesse. Eu gostava daquela paisagem sem horizontes como se fosse meu próprio lar. Continuava com a sensação de que minhas memórias estavam ao meu alcance, quase palpáveis, mas não conseguia alcançá-las, não ainda. Agora, por fim, eu teria tempo para assimilar o que acabara de acontecer.

 

Eu estava aqui porque queria. Dessa constatação, de alguma forma, eu tinha certeza. Olhei novamente para minhas mãos. Eu as quis desse modo. Não me arrependia. Não sentia um pingo de frustração. Liguei o piloto automático, programei-o para a colônia mais próxima e fechei meus olhos, ou as lentes que ficavam por debaixo da máscara, e me coloquei em estado de hibernação, esperando chegar onde poderia relembrar e recomeçar.

bottom of page